quarta-feira, 22 de novembro de 2017

20 DE NOVEMBRO: CONSCIÊNCIA HUMANA, MIMIMI, VITIMISMO E POLITICAMENTE CORRETO

20 de Novembro. O dia da Consciência Negra. A existência dessa data incomoda uma parcela grande da sociedade. Por que cargas d’água deveria existir uma Consciência Negra? Isso não seria segregacionista, racismo ao contrário? Não deveríamos todos lutar por uma consciência humana? Se existe o dia da Consciência Negra não deveria existir também o da consciência branca?

Afinal, hoje em dia já não se pode falar mais nada, qualquer coisa é racismo! Vivemos a era do mimimi, a ditadura do “politicamente correto”. Vitimismo! Isso é coisa de preto!

Não precisaríamos de uma consciência humana já que todos somos iguais?

Dizer que não há necessidade de um dia em que se ressalte a importância de refletir sobre a condição do negro no Brasil e defender que exista uma consciência humana é, no mínimo, contraditório. E eu me pergunto: qual consciência humana está sendo exaltada aqui?
Para responder a essa pergunta, é preciso localizar historicamente como o 20 de Novembro surgiu e quais os seus sentidos para a história do Brasil.

A instauração dessa data remete às décadas de 70 e 80 quando o Movimento Negro se organizava no contexto da ditatura civil-militar. Durante a “lenta, gradual e segura” reabertura democrática, vários movimentos sociais e movimentos identitários surgiram para reivindicar sua cidadania. E o Movimento Negro, nesse período, se constituía como movimento, de forma mais veemente, na sistematização da luta pela igualdade racial.

À época, o que diferenciava a luta do Movimento Negro das lutas de resistência empreendidas pelos negros até então era a cobrança pela desmistificação do mito da democracia racial, pelo reconhecimento da existência do racismo no Brasil e pelas, ainda embrionárias, políticas reparatórias no Brasil.

O mito da democracia racial foi uma ideologia forjada em fins do século XIX e começo do século XX quando a recém República começava a pensar sobre os significados de ser uma nação em uma sociedade marcada pelo histórico da escravidão. A elite intelectual e política, apoiada pela pseudociência da época, precisava responder às contradições desse passado negro desagradável que se fazia visível e que se integrava à ideia de nação, já que abolição não permitia mais a escravização.

Como construir a nação com um número tão alto de pretos ex-escravos corrompendo a nova República? As respostas foram dadas: o elemento negro degenerava a brasilidade. Sim, acreditava-se que o brasileiro seria um povo degenerado por causa da sua mistura com os negros ex-escravizados. A saída menos ruim seria a miscigenação: vamos nos misturar com brancos até que o elemento degenerador negro se apague das características físicas do brasileiro e o Brasil finalmente se torne algo próximo de uma Europa nos trópicos. A política de embranquecimento foi apoiada e incentivada pelo Estado. Milhares de europeus fugindo da guerra vieram para cá através do financiamento do Estado com o objetivo de embranquecer a população.

Alguns anos mais tarde, os intelectuais vão mudar o foco dessa visão. A miscigenação deixa de ser vista como uma coisa ruim (mas necessária) e passa a ser exaltada como uma característica boa oriunda da influência dos portugueses que foram colonizadores tolerantes e agregadores: aqui no Brasil – diferente dos EUA –, por ter sido colonizado por Portugal, todas as etnias que compõe o povo brasileiro, vivem em perfeita harmonia. Índios, negros e brancos: somos um paraíso racial, aqui não há briga, não há conflitos. Somos um povo pacífico, o negro não se revoltou, aceitou a escravização e agora que finalmente obteve a redenção pode desfrutar da sua liberdade. Está tudo ótimo! Aproveitem a bondade que lhes foi concedida pela Princesa Isabel e comemorem o 13 de Maio. Isso de 20 de Novembro é coisa de preto! Aqui no Brasil não há negros, somos todos morenos, todos iguais! Um povo mestiço.  

Essa é uma visão da história escrita por mãos brancas. Porque, na verdade, o negro nunca foi passível frente às atrocidades da escravidão. Ele sempre lutou muito. E de várias formas. Hoje, a história dos quilombos já é contada de outro modo, porque o Movimento Negro passou a questionar as formas eurocêntricas da escrita da história e reivindicaram que fosse ensinado a história da África e do negro no Brasil nas escolas.

É nesse momento que o Movimento Negro – ao fazer a denúncias de que vivemos em um País racista, de que a democracia racial é um mito e de que a abolição não foi concedida e sim conquistada com muita luta dos próprios negros – questiona o 13 de Maio como uma dada de comemoração da liberdade e fala em 20 de Novembro como uma data simbólica, representada pela morte de Zumbi dos Palmares em 1695.




Consciência Negra é, nesse sentido, um dia que rememora toda a luta do povo negro contra a escravidão e contra o racismo que, mesmo passados 129 anos da abolição, continua sendo praticado na atualidade. Porque embora a ciência hoje já não aceite mais a ideia de raças do ponto de vista biológico, o racismo que acontece no Brasil recai sobre a cor da pele. Por isso, é importante, sim, falarmos em raça. A despeito do avanço das descobertas científicas e da revelação de que só existe uma raça que é a humana, do ponto de vista cultural, histórico e social, a ideia de raça ainda existe e está atrelada às características físicas mais visíveis, como a cor da pele. Principalmente, porque a sociedade permaneceu cultivando a hierarquização dos tipos humanos. É só fazer um exercício de observação e enxergar onde estão localizados os negros na cidade, quais são as funções que ocupam e os bairros em que moram.  

Somente no ano de 2001, durante a Conferência de Durban na África do Sul, é que foi reconhecido internacionalmente a existência do racismo no Brasil e a necessidade de políticas afirmativas. E, em 2003, através de mais uma grande conquista do Movimento Negro rumo à promoção da igualdade racial, foi promulgada a Lei 10.639/2003 que obriga o ensino de história e cultura africana e afro-brasileiras nas escolas.

A consciência humana não entende que a sociedade é marcada pela exclusão dos negros e negras dos espaços de poder. Ela não compreende que 54% da população brasileira é afrodescendente e que somente 7% da população negra está nas universidades. A consciência humana é contra as cotas, pois para ela não há urgência em que a vida das pessoas que historicamente ficaram à margem da sociedade melhore. Os negros precisam esperar mais um pouco. A consciência humana diz que bandido bom é bandido morto, mas não percebe que a polícia racista tem um tipo de suspeito e que esse tipo, preto, está sempre sob o pressuposto do crime.  

A consciência humana diz que já temos muitos feriados, não é preciso mais um! Eles dizem que os negros podem e são capazes, não precisam de ajuda do Estado, que é só eles quererem que eles conseguem. A consciência humana não reconhece a luta do negro no Brasil pela liberdade. A consciência humana não quer perder seus escravos e privilégios. Não quer assinar a carteira das antigas mucamas. A consciência humana não se importa se mais um menino negro foi morto na favela.

Mimimi. Politicamente correto. Vitimismo. Boa coisa não era. Coisa de preto. Vá pentear o cabelo. É só uma brincadeira. Vitimistas! Os negros são os mais racistas. Dia de branco. Neguinha folgada. Não tem senso de humor? Vão roubar minha vaga. Mimimi! Inveja branca. Tenho até amigo negro. Agora tudo é racismo. Cabelo duro. O mundo tá chato. Politicamente correto! A coisa tá preta. Pena de morte. Vagabundo. Somos todos iguais. Consciência humana.





quinta-feira, 19 de outubro de 2017

Capoeira Angola, aprendizagem e África



Quando eu era jovenzinha, a capoeira era algo muito distante das minhas possibilidades. Eu via as pessoas jogarem, achava lindo, mas eu nunca vislumbrei aquela prática como algo ao meu alcance.
Já na faculdade, por volta dos 25 anos, um amigo capoeirista me convidou para treinar. Respondi a ele que eu não poderia pois não sabia nem virar uma estrelinha. Se com 15 anos eu não havia conseguido fazer essas acrobacias, imagina aos 25 quando o corpo está mais “acomodado”!
Depois fui descobrir que não se tratava de acomodação, e sim de amarras. Mas eu já volto nesse assunto.
Meu amigo, então, me respondeu que não precisava saber fazer essas coisas, que qualquer pessoa poderia jogar e que a capoeira envolvia muito mais do que apenas a movimentação corporal. Eu não acreditava muito naquilo, mas resolvi conferir essa capoeira “diferente” de que ele tanto falava.
Foi aí que eu fui apresentada à Capoeira Angola. Desse dia em diante, eu me apaixonei perdidamente e, de uma forma ou de outra, a Capoeira Angola vem acompanhando meus passos. Meu objetivo aqui não é segregar a Capoeira Angola da Regional, dizer que uma é melhor do que a outra ou qualquer outra coisa nesse sentido. Pelo contrário, hoje eu entendo o valor da capoeira de forma geral e sei da importância que cada uma dessas vertentes tem na história da capoeira no Brasil.
Porém, no meu percurso, a Capoeira Angola fez toda a diferença. Eu diria até que ela salvou a minha vida, assim como acredito que ela salva a de todo mundo que a conhece. Sério! Aprendi e aprendo muito como pessoa, como mulher e como profissional.  Eu vou explicar os porquês.
Naquela época, eu morava em Minas Gerais e comecei a treinar lá. Realmente, tudo o que meu amigo me falava era verdade: ser capoeira era saber encarar os altos e baixos da roda da vida. Ser capoeira era saber se comportar frente às eventuais quedas e às rasteiras, era saber se levantar e continuar o jogo. Era também saber a hora de apertar as mãos. Era dialogar sem ferir. Era brincar. Vadiar.
Mestre Pastinha dizia: “Capoeirista não é aquele que sabe movimentar o corpo, e sim aquele que se deixa movimentar pela alma”.


Os ensinamentos de Mestre Pastinha são muito bonitos e importantes. Os sentimentos humanos como vaidade, egocentrismo, inveja, competitividade podem atrapalhar o/a capoeira e, por isso, junto com o domínio do corpo é necessário o domínio da mente. Um aprendizado infinito, eterno e diário.
Todo dia novos obstáculos e novas situações aparecem na roda e o/a capoeira deve aprender a se posicionar. Todo dia somos confrontados com nossos monstros interiores e é incrível como no jogo eles se fazem presentes e nos testam veementemente. Esse é um dos maiores aprendizados que venho realizando: me deparar com meus monstros e entender como eles atuam na minha corporeidade.
Os limites do corpo para mim sempre foram algo desafiador. Ver o mundo de cabeça para baixo! Até hoje percebo como é difícil fazer movimentos que deslocam a ordem social. A bananeira é o meu exemplo clássico! Puxa vida, como é difícil depois de adulto sair do eixo da normalidade. Mas eu percebia também que essa dificuldade afetava mais as mulheres.
Os meninos e homens tinham mais facilidade para tentar. As meninas e mulheres tinham mais medo e vergonha. Afinal, trata-se de colocar o bumbum para o alto! E a perspectiva muda radicalmente: aquele corpo que socialmente é visto como um corpo sexualizado, voltado para o prazer masculino, para as obrigações domésticas está agora brincando! Vadiando!
Era sobre isso a que me referia quando falei sobre as amarras. O corpo feminino desde muito cedo é tratado como objeto sexual. Qual mulher que, quando criança, não foi assediada por um homem na rua? “Mas era só um simples fiu fiu”. Mas era só uma criança. Isso quando é só um fiu fiu. Normalmente, a coisa é mais pesada. Olhares, palavras, quando não toques inapropriados.
Falando como mulher branca, não posso deixar de observar que a sexualização do corpo da mulher negra acontece de forma ainda mais grave devido ao racismo.  
As amarras estão presentes. E elas se cristalizam no corpo, no uso desse corpo feminino no espaço. Colocar os pés para cima é romper com essas amarras. É liberdade. 
Pois gingar trata-se de liberdade. É comum ouvirmos que a capoeira era praticada pelos negros na época da escravidão como forma de resistência.
Mas o que isso significa realmente? Se a capoeira era a “luta dos escravos”, quem eram os escravos? De onde eles vieram e o que eles faziam lá anteriormente?
Quando comecei a treinar, eu estudava história na Universidade Federal de Viçosa. Na época, não tinha vontade de atuar em sala de aula como professora e ainda não tinha me encontrado no curso. Estudávamos todas as vertentes europeias da história e não tínhamos nenhuma disciplina sobre História da África.
A Capoeira Angola me apresentou um outro lado da história que não era ensinado na universidade. Uma história esquecida. A importância da África para a construção da sociedade brasileira infelizmente ainda é estudada de forma insatisfatória. Até mesmo nos currículos de ensino superior. Nas escolas, então! Quando falam de africanos sempre ou quase sempre os tratam como “os escravos”. Há na tradição escolar uma séria naturalização da escravidão que impede as crianças de se identificarem com conhecimentos e culturas que não sejam as hegemônicas, como a branca, masculina, ocidental, europeia.
África, nessa visão estereotipada, é o lugar das coisas ruins, das doenças, de sociedades tribais, atrasadas, enfim, sempre relacionada com aspectos negativos.
Sim! A capoeira é resistência! Ela foi criada no Brasil pelos descendentes de africanos escravizados no contexto da escravidão quando aos negros tentaram retirar todas as possibilidades de humanidade. E mesmo em uma situação devastadora, os diversos povos africanos que para cá foram trazidos puderam recriar sua existência. A capoeira – assim como várias outras manifestações culturais – compreendem as formas pelas quais os africanos entendem e vivem a vida.
Como subalternizados no contexto colonial, essas pessoas puderam escrever sua história através dos corpos, dos movimentos, da luta, da música, dos tambores, da circularidade, da fé, da teatralidade, da reexistência.



Devido a uma falsa abolição e um processo de construção da nação baseado na noção de mestiçagem, essas escritas passaram por diversas fases até chegarem aos dias atuais. De infração do código penal até símbolo de brasilidade, passando por um processo de embranquecimento ao sair da esfera do cultural para a do esporte competitivo, a capoeira sobrevive.
E salva vidas. A capoeira ensina aquilo que não aprendemos na escola. Aprendemos com nossos mestres na vivência; aprendemos - como nos ensinou mestre Pastinha – que a capoeira se ensina “pegando na mão”. Aprendemos cantando, tocando e nos movimentando.
Não aprendemos capoeira nas cadeiras da escola. Pelo contrário, nossos corpos são cada vez mais engessados pelas salas de aula.  
Hoje sou professora na cidade de São José dos Campos e estou cada dia mais convencida de que temos muito que aprender com os legados africanos deixados para nós. Enquanto não entendermos que a roda da vida foi feita para girar e teimarmos em querer caminhar numa linearidade da qual nossa tradição não faz parte, teremos nossas mentes eternamente escravizadas.   


quarta-feira, 5 de novembro de 2014

NOTAS SOBRE UMA CAPITAL NORDESTINA


Recife – cidade das belas pontes, do mangue, da pobreza, dos maracatus, dos movimentos culturais, do lixo, do carnaval, do frevo... A lindeza de seus prédios e pontes coloniais convivendo com a realidade de milhares de pessoas instaladas à beira de rios imundos; a beleza dos maracatus e de toda efervescência cultural junto com o fedor da urbanização desordenada e caótica que foi gerada – principalmente – pelo processo de colonização e que continua existindo sob o nome de progresso.


Estar em Recife é entender o Manguebeat. Quando vi pela primeira vez aqueles lindos prédios do século XVII, e, depois, passando ao largo do mangue onde pessoas constroem suas casas e vivem de maneira bem precária, ainda me deparei com arranha-céus gigantescos! Foi uma profusão de sentimentos! Tive a noção mais apropriada do que é a Manguetown.
E de que o movimento Manguebeat (r)existe!  




Nascido no começo da década de 90, o Manguebeat é um movimento que liga tradição à modernidade denunciando as mazelas da cidade de Recife ao mesmo tempo em que valoriza as raízes de seu povo e a fusão com elementos pop.
De maneira crítica, bandas como Nação Zumbi e Mundo Livre S/A criaram uma nova expressão musical e artística onde, através do diálogo do novo com a tradição, os anseios da juventude da década de 90 mostraram ao Brasil toda a sua sagacidade:

A sensação de ver essas bandas hoje é inexplicável, pelo sentido que elas têm para a cidade e que podem adquirir para o país, de uma maneira mais geral.
Nós aqui do sudeste (principalmente eixo Rio-São Paulo), não teríamos também os nossos “mangues”? A maneira pela qual as regiões sul e sudeste do país vêm se relacionando com o nordeste, firmando cada vez mais estereótipos negativos desta região, demostra o quanto o resto do Brasil precisa aprender com eles. E o Movimento Mangue é a marca mais registrada dessa guinada, pelo menos no Recife.

Esse movimento que nós aqui pouco conhecemos nasce oficialmente para a mídia em 1991/92 com a divulgação deste Manifesto. Sua escrita é atribuída a Fred Zero Quatro (vocal do Mundo Livre Livre S/A) com participação do falecido Chico Science (na época vocal do Nação Zumbi). Essas foram as principais bandas envolvidas nesse movimento, muito embora tivessem outras. 

A seguir o manifesto:
 Carangueijos com Cérebro (Manifesto)
Por Fred Zero Quatro

Mangue, o conceito.
Estuário. Parte terminal de rio ou lagoa. Porção de rio com água salobra. Em suas margens se encontram os manguezais, comunidades de plantas tropicais ou subtropicais inundadas pelos movimentos das marés. Pela troca de matéria orgânica entre a água doce e a água salgada, os mangues estão entre os ecossistemas mais produtivos do mundo.
Estima-se que duas mil espécies de microorganismos e animais vertebrados e invertebrados estejam associados à vegetação do mangue. Os estuários fornecem áreas de desova e criação para dois terços da produção anual de pescados do mundo inteiro. Pelo menos oitenta espécies comercialmente importantes dependem do alagadiço costeiro.
Não é por acaso que os mangues são considerados um elo básico da cadeia alimentar marinha. Apesar das muriçocas, mosquitos e mutucas, inimigos das donas-de-casa, para os cientistas são tidos como símbolos de fertilidade, diversidade e riqueza.

Manguetown, a cidade
A planície costeira onde a cidade do Recife foi fundada é cortada por seis rios. Após a expulsão dos holandeses, no século XVII, a (ex)cidade "maurícia" passou desordenadamente às custas do aterramento indiscriminado e da destruição de seus manguezais.
Em contrapartida, o desvairio irresistível de uma cínica noção de "progresso", que elevou a cidade ao posto de "metrópole" do Nordeste, não tardou a revelar sua fragilidade.
Bastaram pequenas mudanças nos ventos da história, para que os primeiros sinais de esclerose econômica se manifestassem, no início dos anos setenta. Nos últimos trinta anos, a síndrome da estagnação, aliada a permanência do mito da "metrópole" só tem levado ao agravamento acelerado do quadro de miséria e caos urbano.

Mangue, a cena
Emergência! Um choque rápido ou o Recife morre de infarto! Não é preciso ser médico para saber que a maneira mais simples de parar o coração de um sujeito é obstruindo as suas veias. O modo mais rápido, também, de infartar e esvaziar a alma de uma cidade como o Recife é matar os seus rios e aterrar os seus estuários. O que fazer para não afundar na depressão crônica que paralisa os cidadãos? Como devolver o ânimo, deslobotomizar e recarregar as baterias da cidade? Simples! Basta injetar um pouco de energia na lama e estimular o que ainda resta de fertilidade nas veias do Recife.
Em meados de 91, começou a ser gerado e articulado em vários pontos da cidade um núcleo de pesquisa e produção de idéias pop. O objetivo era engendrar um "circuito energético", capaz de conectar as boas vibrações dos mangues com a rede mundial de circulação de conceitos pop. Imagem símbolo: uma antena parabólica enfiada na lama.
Hoje, Os mangueboys e manguegirls são indivíduos interessados em hip-hop, colapso da modernidade, Caos, ataques de predadores marítimos (principalmente tubarões), moda, Jackson do Pandeiro, Josué de Castro, rádio, sexo não-virtual, sabotagem, música de rua, conflitos étnicos, midiotia, Malcom Maclaren, Os Simpsons e todos os avanços da química aplicados no terreno da alteração e expansão da consciência.
Bastaram poucos anos para os produtos da fábrica mangue invadirem o Recife e começarem a se espalhar pelos quatro cantos do mundo. A descarga inicial de energia gerou uma cena musical com mais de cem bandas. No rastro dela, surgiram programas de rádio, desfiles de moda, vídeo clipes, filmes e muito mais. Pouco a pouco, as artérias vão sendo desbloqueadas e o sangue volta a circular pelas veias da Manguetown.


Recife respira história. E história também é presente. Então, vamos lá!
Cidade onde praticamente começou a efetiva colonização a partir de 1580 e que durante muitos anos rendeu lucros exorbitantes para Portugal através dos engenhos de cana de açúcar.
Em 1630, a principal área canavieira da América Portuguesa (a capitania de Pernambuco) caia nas mãos dos holandeses, que a governaram até 1654.

Durante a ocupação Holandesa, a cidade foi governada pelo holandês Maurício de Nassau e transformada em sede do governo holandês. Nassau deu os primeiros passos rumo ao “progresso” e “modernizou” a cidade de Recife. Se antes, com o domínio dos portugueses, Olinda era a cidade mais importante da capitania de Pernambuco, agora, com os holandeses, passou a ser Recife.

Cidade de resistência. Cidade criada pelos braços negros de escravizados africanos e indígenas, que presenciou de pertinho o nascimento do maior quilombo da história: Quilombo dos Palmares, cujo chefe guerreiro durante muito tempo foi Zumbi. Resistência dos tambores, dos maracatus, dos candomblés, da África! Resistência à qualquer tipo de colonização das mentes!


Após a Restauração Pernambucana, com a expulsão dos holandeses e a restauração do domínio português, o Nordeste iniciou uma crise devido, principalmente, a concorrência com a produção de açúcar holandesa nas Antilhas. As disputas entre portugueses e holandeses também favoreceram que muitos escravizados fugissem para Palmares, piorando a crise econômica. Outro fator foi que os altos custeios com a guerra fizeram com que os impostos aumentassem gerando resistência dos colonos.

O Nordeste foi e continua sendo deixado de lado pelo suposto “centro” do Brasil.
O Movimento Mangue da década de 90 hoje completa 20 anos de pura revolução no Recife e no Brasil. Até quando vamos fechar os olhos para isso?

Recife, cidade nordestina que precisa continuar ensinando muita coisa para o Brasil!


VIVA CHICO SCIENCE! VIVA NAÇÃO ZUMBI! VIVA ZUMBI DOS PALMARES!

sábado, 3 de maio de 2014

Por quê estudar história?

Vocês já pararam para pensar o porquê de estudarmos história? As respostas mais frequentes que eu ouço são: a história auxilia no desenvolvimento de cidadãos críticos e questionadores; ela proporciona a conscientização dos indivíduos; o estudo do passado permite entender o presente e transformá-lo; permite perceber como o mundo está diferente de antes.

A maioria dos estudantes reconhece a importância da disciplina, mas acha seu estudo muito chato e sem sentido: estudo de coisas velhas e sem relação com a sua vida.

Há aí uma contradição: como uma disciplina tão importante assim pode ser tão chata? Acredito que existam várias respostas para esta pergunta, mas eu tenho a impressão de que a história ensinada na escola e imposta pelos nossos currículos - na maioria das vezes - limita o lado vivo e dinâmico da disciplina e acaba por transforma-la numa história única e universal, distante da nossa realidade.

A minha intenção, assim como a de muitos professores que conheço, é fazer com que as aulas de história tenham sentido na vida de cada um de nós e, com isso, elas deixem de ser chatas e possam nos ajudar a sermos indivíduos e cidadãos mais conscientes do nosso SER NO MUNDO.  

No entanto, encarar esse desafio não é coisa fácil, e é preciso que encontremos uma maneira de fazer isso juntos. Por que juntos?

Primeiro, porque o conhecimento histórico não é pronto, acabado, dado. Ao contrário, ele está sempre em construção e, em sala de aula, precisamos entender que o professor não é aquela figura que sabe de toda a verdade e que vai encher o aluno de conhecimento. Não! É preciso trocar experiências e ideias para construirmos o saber histórico juntos. Até porque a história de cada um de nós também faz parte da história da humanidade.

Segundo, precisamos pensar qual a história que tradicionalmente nos é ensinada na escola. Afinal, que história é ESSA? Quem é que conta ESSA história? Por que estudamos ESSA história e não outras?

Para iniciar a reflexão, deixo uma sugestão: um vídeo curto (duração de menos de 20 minutos) de uma escritora nigeriana que conta um pouco de sua trajetória como contadora de histórias. 

O vídeo chama-se "O perigo de uma história única", da escritora Chimamanda Adichie.





Chimamanda Adichie fala da influência que tivera dos livros europeus (britânicos) e norte-americanos durante a infância, e de como esses eram suas únicas referências de histórias e de livros. 

Desse modo, mesmo sendo uma escritora nigeriana (país situado na África Ocidental e colonizado pelos ingleses),  as histórias que ela lia e escrevia, sempre tinham personagens bem diferentes das pessoas de seu país. 

Ela fala sobre como os seres humanos são impressionáveis e vulneráveis face a uma história - principalmente quando crianças. Chimamanda começou a perceber isso com a descoberta dos escritores africanos, pois com eles ela se deu conta de que as histórias escritas nos livros não tinham que ser necessariamente estrangeiras; ela percebeu que ela poderia se identificar nas histórias contadas pelos africanos e que ela existia na literatura. Ou seja: ela fala que os livros africanos a salvaram de ter uma história única sobre o que eram os livros.

Ao longo do vídeo, Chimamanda nos conta sobre sua trajetória e, de uma maneira bem interessante, abre caminhos para entendermos os mecanismos da constituição daquela história que eu falava lá em cima: da história ensinada na escola. Que história nos é contada sobre o nosso povo? Quem as conta e como as conta? Como nos vemos nessa história?

O Brasil é um país formado a partir da colonização portuguesa e da miscigenação entre índios, africanos e portugueses. Porém, a história que estudamos parece ter somente um referencial: o do europeu. Apesar de não sermos mais colônia de Portugal desde 1822, acho que ainda vivenciamos resquícios deste passado colonial.

Por exemplo: o ensino de história. Levando em consideração que o Brasil nasce da mistura entre as três raças (índio, negro e branco) e que os portugueses só conseguiram colonizar o território que hoje é o Brasil por meio do domínio, da violência e da escravização de índios nativos e de africanos, eu pergunto: O que sabemos das histórias e das culturas africanas e indígenas que também fazem parte da história do Brasil? Por que a história universal é sinônimo da história da europa? Por que não estudamos também a história da África, dos índios e de outros povos não-europeus? 

Assim como Chimamanda em relação aos livros, nós aqui temos apenas uma única referencia sobre o que é história ensinada em sala de aula, e essa referência também é estrangeira. Eu acredito que essa referencia estrangeira dificulta nos identificarmos nessa história, que de tão importante passa a ser chata e sem sentido. 

A autora questiona durante o vídeo: "Comece uma história com as flechas dos nativos americanos e não com a chegada dos britânicos [no caso brasileiro com a chegada dos portugueses] e você tem uma história totalmente diferente". Exemplo: quem já não ouviu falar na "descoberta" do Brasil? Descoberta ou invasão? Mude as palavras de um discurso e também teremos uma história completamente diferente.  
  
Chimamanda diz:
"Então, é assim que se cria uma única história: mostre um povo como uma coisa, como somente uma coisa, repetidamente, e é isso o que eles se tornarão". "É impossível falar sobre uma única história sem falar sobre PODER". 
"Como [as histórias] são contadas, quem as conta, quando e quantas histórias são contadas, tudo realmente depende do PODER".
"PODER é a habilidade de não só contar a história de uma outra pessoa, mas de fazê-la a história definitiva daquela pessoa".

O poder colonial parece ainda ter efeito sobre nós brasileiros, bem como sobre os vários países periféricos que sofreram domínio colonial europeu. 

Como nós podemos existir na história se a história que nos contam é uma história estrangeira?

Expus aqui fragmentos de uma reflexão bem profunda que nem de longe se esgota nestas poucas palavras... 

Deixem suas colaborações!