quinta-feira, 19 de outubro de 2017

Capoeira Angola, aprendizagem e África



Quando eu era jovenzinha, a capoeira era algo muito distante das minhas possibilidades. Eu via as pessoas jogarem, achava lindo, mas eu nunca vislumbrei aquela prática como algo ao meu alcance.
Já na faculdade, por volta dos 25 anos, um amigo capoeirista me convidou para treinar. Respondi a ele que eu não poderia pois não sabia nem virar uma estrelinha. Se com 15 anos eu não havia conseguido fazer essas acrobacias, imagina aos 25 quando o corpo está mais “acomodado”!
Depois fui descobrir que não se tratava de acomodação, e sim de amarras. Mas eu já volto nesse assunto.
Meu amigo, então, me respondeu que não precisava saber fazer essas coisas, que qualquer pessoa poderia jogar e que a capoeira envolvia muito mais do que apenas a movimentação corporal. Eu não acreditava muito naquilo, mas resolvi conferir essa capoeira “diferente” de que ele tanto falava.
Foi aí que eu fui apresentada à Capoeira Angola. Desse dia em diante, eu me apaixonei perdidamente e, de uma forma ou de outra, a Capoeira Angola vem acompanhando meus passos. Meu objetivo aqui não é segregar a Capoeira Angola da Regional, dizer que uma é melhor do que a outra ou qualquer outra coisa nesse sentido. Pelo contrário, hoje eu entendo o valor da capoeira de forma geral e sei da importância que cada uma dessas vertentes tem na história da capoeira no Brasil.
Porém, no meu percurso, a Capoeira Angola fez toda a diferença. Eu diria até que ela salvou a minha vida, assim como acredito que ela salva a de todo mundo que a conhece. Sério! Aprendi e aprendo muito como pessoa, como mulher e como profissional.  Eu vou explicar os porquês.
Naquela época, eu morava em Minas Gerais e comecei a treinar lá. Realmente, tudo o que meu amigo me falava era verdade: ser capoeira era saber encarar os altos e baixos da roda da vida. Ser capoeira era saber se comportar frente às eventuais quedas e às rasteiras, era saber se levantar e continuar o jogo. Era também saber a hora de apertar as mãos. Era dialogar sem ferir. Era brincar. Vadiar.
Mestre Pastinha dizia: “Capoeirista não é aquele que sabe movimentar o corpo, e sim aquele que se deixa movimentar pela alma”.


Os ensinamentos de Mestre Pastinha são muito bonitos e importantes. Os sentimentos humanos como vaidade, egocentrismo, inveja, competitividade podem atrapalhar o/a capoeira e, por isso, junto com o domínio do corpo é necessário o domínio da mente. Um aprendizado infinito, eterno e diário.
Todo dia novos obstáculos e novas situações aparecem na roda e o/a capoeira deve aprender a se posicionar. Todo dia somos confrontados com nossos monstros interiores e é incrível como no jogo eles se fazem presentes e nos testam veementemente. Esse é um dos maiores aprendizados que venho realizando: me deparar com meus monstros e entender como eles atuam na minha corporeidade.
Os limites do corpo para mim sempre foram algo desafiador. Ver o mundo de cabeça para baixo! Até hoje percebo como é difícil fazer movimentos que deslocam a ordem social. A bananeira é o meu exemplo clássico! Puxa vida, como é difícil depois de adulto sair do eixo da normalidade. Mas eu percebia também que essa dificuldade afetava mais as mulheres.
Os meninos e homens tinham mais facilidade para tentar. As meninas e mulheres tinham mais medo e vergonha. Afinal, trata-se de colocar o bumbum para o alto! E a perspectiva muda radicalmente: aquele corpo que socialmente é visto como um corpo sexualizado, voltado para o prazer masculino, para as obrigações domésticas está agora brincando! Vadiando!
Era sobre isso a que me referia quando falei sobre as amarras. O corpo feminino desde muito cedo é tratado como objeto sexual. Qual mulher que, quando criança, não foi assediada por um homem na rua? “Mas era só um simples fiu fiu”. Mas era só uma criança. Isso quando é só um fiu fiu. Normalmente, a coisa é mais pesada. Olhares, palavras, quando não toques inapropriados.
Falando como mulher branca, não posso deixar de observar que a sexualização do corpo da mulher negra acontece de forma ainda mais grave devido ao racismo.  
As amarras estão presentes. E elas se cristalizam no corpo, no uso desse corpo feminino no espaço. Colocar os pés para cima é romper com essas amarras. É liberdade. 
Pois gingar trata-se de liberdade. É comum ouvirmos que a capoeira era praticada pelos negros na época da escravidão como forma de resistência.
Mas o que isso significa realmente? Se a capoeira era a “luta dos escravos”, quem eram os escravos? De onde eles vieram e o que eles faziam lá anteriormente?
Quando comecei a treinar, eu estudava história na Universidade Federal de Viçosa. Na época, não tinha vontade de atuar em sala de aula como professora e ainda não tinha me encontrado no curso. Estudávamos todas as vertentes europeias da história e não tínhamos nenhuma disciplina sobre História da África.
A Capoeira Angola me apresentou um outro lado da história que não era ensinado na universidade. Uma história esquecida. A importância da África para a construção da sociedade brasileira infelizmente ainda é estudada de forma insatisfatória. Até mesmo nos currículos de ensino superior. Nas escolas, então! Quando falam de africanos sempre ou quase sempre os tratam como “os escravos”. Há na tradição escolar uma séria naturalização da escravidão que impede as crianças de se identificarem com conhecimentos e culturas que não sejam as hegemônicas, como a branca, masculina, ocidental, europeia.
África, nessa visão estereotipada, é o lugar das coisas ruins, das doenças, de sociedades tribais, atrasadas, enfim, sempre relacionada com aspectos negativos.
Sim! A capoeira é resistência! Ela foi criada no Brasil pelos descendentes de africanos escravizados no contexto da escravidão quando aos negros tentaram retirar todas as possibilidades de humanidade. E mesmo em uma situação devastadora, os diversos povos africanos que para cá foram trazidos puderam recriar sua existência. A capoeira – assim como várias outras manifestações culturais – compreendem as formas pelas quais os africanos entendem e vivem a vida.
Como subalternizados no contexto colonial, essas pessoas puderam escrever sua história através dos corpos, dos movimentos, da luta, da música, dos tambores, da circularidade, da fé, da teatralidade, da reexistência.



Devido a uma falsa abolição e um processo de construção da nação baseado na noção de mestiçagem, essas escritas passaram por diversas fases até chegarem aos dias atuais. De infração do código penal até símbolo de brasilidade, passando por um processo de embranquecimento ao sair da esfera do cultural para a do esporte competitivo, a capoeira sobrevive.
E salva vidas. A capoeira ensina aquilo que não aprendemos na escola. Aprendemos com nossos mestres na vivência; aprendemos - como nos ensinou mestre Pastinha – que a capoeira se ensina “pegando na mão”. Aprendemos cantando, tocando e nos movimentando.
Não aprendemos capoeira nas cadeiras da escola. Pelo contrário, nossos corpos são cada vez mais engessados pelas salas de aula.  
Hoje sou professora na cidade de São José dos Campos e estou cada dia mais convencida de que temos muito que aprender com os legados africanos deixados para nós. Enquanto não entendermos que a roda da vida foi feita para girar e teimarmos em querer caminhar numa linearidade da qual nossa tradição não faz parte, teremos nossas mentes eternamente escravizadas.   


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