Quando eu
era jovenzinha, a capoeira era algo muito distante das minhas
possibilidades. Eu via as pessoas jogarem, achava lindo, mas eu nunca
vislumbrei aquela prática como algo ao meu alcance.
Já na
faculdade, por volta dos 25 anos, um amigo capoeirista me convidou para
treinar. Respondi a ele que eu não poderia pois não sabia nem virar uma
estrelinha. Se com 15 anos eu não havia conseguido fazer essas acrobacias,
imagina aos 25 quando o corpo está mais “acomodado”!
Depois
fui descobrir que não se tratava de acomodação, e sim de amarras. Mas eu já
volto nesse assunto.
Meu amigo,
então, me respondeu que não precisava saber fazer essas coisas, que qualquer
pessoa poderia jogar e que a capoeira envolvia muito mais do que apenas a
movimentação corporal. Eu não acreditava muito naquilo, mas resolvi conferir essa
capoeira “diferente” de que ele tanto falava.
Foi aí
que eu fui apresentada à Capoeira Angola. Desse dia em diante, eu me apaixonei
perdidamente e, de uma forma ou de outra, a Capoeira Angola vem acompanhando
meus passos. Meu objetivo aqui não é segregar a Capoeira Angola da Regional,
dizer que uma é melhor do que a outra ou qualquer outra coisa nesse sentido. Pelo
contrário, hoje eu entendo o valor da capoeira de forma geral e sei da
importância que cada uma dessas vertentes tem na história da capoeira no
Brasil.
Porém, no
meu percurso, a Capoeira Angola fez toda a diferença. Eu diria até
que ela salvou a minha vida, assim como acredito que ela salva a de todo mundo que a conhece. Sério! Aprendi e aprendo muito como pessoa, como mulher e como
profissional. Eu vou explicar os porquês.
Naquela
época, eu morava em Minas Gerais e comecei a treinar lá. Realmente, tudo o que
meu amigo me falava era verdade: ser capoeira era saber encarar os altos e
baixos da roda da vida. Ser capoeira era saber se comportar frente às eventuais
quedas e às rasteiras, era saber se levantar e continuar o jogo. Era também
saber a hora de apertar as mãos. Era dialogar sem ferir. Era brincar. Vadiar.
Mestre
Pastinha dizia: “Capoeirista não é aquele que sabe movimentar o corpo, e sim
aquele que se deixa movimentar pela alma”.
Os ensinamentos
de Mestre Pastinha são muito bonitos e importantes. Os sentimentos humanos
como vaidade, egocentrismo, inveja, competitividade podem atrapalhar o/a capoeira
e, por isso, junto com o domínio do corpo é necessário o domínio da mente. Um
aprendizado infinito, eterno e diário.
Todo dia novos
obstáculos e novas situações aparecem na roda e o/a capoeira deve aprender a se
posicionar. Todo dia somos confrontados com nossos monstros interiores e é
incrível como no jogo eles se fazem presentes e nos testam veementemente. Esse
é um dos maiores aprendizados que venho realizando: me deparar com meus
monstros e entender como eles atuam na minha corporeidade.
Os
limites do corpo para mim sempre foram algo desafiador. Ver o mundo de cabeça
para baixo! Até hoje percebo como é difícil fazer movimentos que deslocam a
ordem social. A bananeira é o meu exemplo clássico! Puxa vida, como é difícil depois
de adulto sair do eixo da normalidade. Mas eu percebia também que essa
dificuldade afetava mais as mulheres.
Os
meninos e homens tinham mais facilidade para tentar. As meninas e mulheres
tinham mais medo e vergonha. Afinal, trata-se de colocar o bumbum para o alto!
E a perspectiva muda radicalmente: aquele corpo que socialmente é visto como um
corpo sexualizado, voltado para o prazer masculino, para as obrigações
domésticas está agora brincando! Vadiando!
Era sobre
isso a que me referia quando falei sobre as amarras. O corpo feminino desde
muito cedo é tratado como objeto sexual. Qual mulher que, quando criança, não
foi assediada por um homem na rua? “Mas era só um simples fiu fiu”. Mas era só
uma criança. Isso quando é só um fiu fiu. Normalmente, a coisa é mais pesada.
Olhares, palavras, quando não toques inapropriados.
Falando
como mulher branca, não posso deixar de observar que a sexualização do corpo da
mulher negra acontece de forma ainda mais grave devido ao racismo.
As
amarras estão presentes. E elas se cristalizam no corpo, no uso desse corpo
feminino no espaço. Colocar os pés para cima é romper com essas amarras. É
liberdade.
Pois gingar
trata-se de liberdade. É comum ouvirmos que a capoeira era praticada pelos
negros na época da escravidão como forma de resistência.
Mas o que
isso significa realmente? Se a capoeira era a “luta dos escravos”, quem eram os
escravos? De onde eles vieram e o que eles faziam lá anteriormente?
Quando
comecei a treinar, eu estudava história na Universidade Federal de Viçosa. Na
época, não tinha vontade de atuar em sala de aula como professora e ainda não
tinha me encontrado no curso. Estudávamos todas as vertentes europeias da
história e não tínhamos nenhuma disciplina sobre História da África.
A
Capoeira Angola me apresentou um outro lado da história que não era ensinado na
universidade. Uma história esquecida. A importância da África para a construção
da sociedade brasileira infelizmente ainda é estudada de forma insatisfatória.
Até mesmo nos currículos de ensino superior. Nas escolas, então! Quando falam
de africanos sempre ou quase sempre os tratam como “os escravos”. Há na
tradição escolar uma séria naturalização da escravidão que impede as crianças de
se identificarem com conhecimentos e culturas que não sejam as hegemônicas,
como a branca, masculina, ocidental, europeia.
África,
nessa visão estereotipada, é o lugar das coisas ruins, das doenças, de sociedades
tribais, atrasadas, enfim, sempre relacionada com aspectos negativos.
Sim! A
capoeira é resistência! Ela foi criada no Brasil pelos descendentes de
africanos escravizados no contexto da escravidão quando aos negros tentaram
retirar todas as possibilidades de humanidade. E mesmo em uma situação
devastadora, os diversos povos africanos que para cá foram trazidos puderam
recriar sua existência. A capoeira – assim como várias outras manifestações
culturais – compreendem as formas pelas quais os africanos entendem e vivem a
vida.
Como
subalternizados no contexto colonial, essas pessoas puderam escrever sua
história através dos corpos, dos movimentos, da luta, da música, dos tambores, da
circularidade, da fé, da teatralidade, da reexistência.
Devido a
uma falsa abolição e um processo de construção da nação baseado na noção de
mestiçagem, essas escritas passaram por diversas fases até chegarem aos dias
atuais. De infração do código penal até símbolo de brasilidade, passando por um
processo de embranquecimento ao sair da esfera do cultural para a do esporte
competitivo, a capoeira sobrevive.
E salva
vidas. A capoeira ensina aquilo que não aprendemos na escola. Aprendemos com
nossos mestres na vivência; aprendemos - como nos ensinou mestre Pastinha – que
a capoeira se ensina “pegando na mão”. Aprendemos cantando, tocando e nos
movimentando.
Não
aprendemos capoeira nas cadeiras da escola. Pelo contrário, nossos corpos são
cada vez mais engessados pelas salas de aula.
Hoje sou
professora na cidade de São José dos Campos e estou cada dia mais convencida de
que temos muito que aprender com os legados africanos deixados para nós.
Enquanto não entendermos que a roda da vida foi feita para girar e teimarmos em
querer caminhar numa linearidade da qual nossa tradição não faz parte, teremos
nossas mentes eternamente escravizadas.
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