quarta-feira, 5 de novembro de 2014

NOTAS SOBRE UMA CAPITAL NORDESTINA


Recife – cidade das belas pontes, do mangue, da pobreza, dos maracatus, dos movimentos culturais, do lixo, do carnaval, do frevo... A lindeza de seus prédios e pontes coloniais convivendo com a realidade de milhares de pessoas instaladas à beira de rios imundos; a beleza dos maracatus e de toda efervescência cultural junto com o fedor da urbanização desordenada e caótica que foi gerada – principalmente – pelo processo de colonização e que continua existindo sob o nome de progresso.


Estar em Recife é entender o Manguebeat. Quando vi pela primeira vez aqueles lindos prédios do século XVII, e, depois, passando ao largo do mangue onde pessoas constroem suas casas e vivem de maneira bem precária, ainda me deparei com arranha-céus gigantescos! Foi uma profusão de sentimentos! Tive a noção mais apropriada do que é a Manguetown.
E de que o movimento Manguebeat (r)existe!  




Nascido no começo da década de 90, o Manguebeat é um movimento que liga tradição à modernidade denunciando as mazelas da cidade de Recife ao mesmo tempo em que valoriza as raízes de seu povo e a fusão com elementos pop.
De maneira crítica, bandas como Nação Zumbi e Mundo Livre S/A criaram uma nova expressão musical e artística onde, através do diálogo do novo com a tradição, os anseios da juventude da década de 90 mostraram ao Brasil toda a sua sagacidade:

A sensação de ver essas bandas hoje é inexplicável, pelo sentido que elas têm para a cidade e que podem adquirir para o país, de uma maneira mais geral.
Nós aqui do sudeste (principalmente eixo Rio-São Paulo), não teríamos também os nossos “mangues”? A maneira pela qual as regiões sul e sudeste do país vêm se relacionando com o nordeste, firmando cada vez mais estereótipos negativos desta região, demostra o quanto o resto do Brasil precisa aprender com eles. E o Movimento Mangue é a marca mais registrada dessa guinada, pelo menos no Recife.

Esse movimento que nós aqui pouco conhecemos nasce oficialmente para a mídia em 1991/92 com a divulgação deste Manifesto. Sua escrita é atribuída a Fred Zero Quatro (vocal do Mundo Livre Livre S/A) com participação do falecido Chico Science (na época vocal do Nação Zumbi). Essas foram as principais bandas envolvidas nesse movimento, muito embora tivessem outras. 

A seguir o manifesto:
 Carangueijos com Cérebro (Manifesto)
Por Fred Zero Quatro

Mangue, o conceito.
Estuário. Parte terminal de rio ou lagoa. Porção de rio com água salobra. Em suas margens se encontram os manguezais, comunidades de plantas tropicais ou subtropicais inundadas pelos movimentos das marés. Pela troca de matéria orgânica entre a água doce e a água salgada, os mangues estão entre os ecossistemas mais produtivos do mundo.
Estima-se que duas mil espécies de microorganismos e animais vertebrados e invertebrados estejam associados à vegetação do mangue. Os estuários fornecem áreas de desova e criação para dois terços da produção anual de pescados do mundo inteiro. Pelo menos oitenta espécies comercialmente importantes dependem do alagadiço costeiro.
Não é por acaso que os mangues são considerados um elo básico da cadeia alimentar marinha. Apesar das muriçocas, mosquitos e mutucas, inimigos das donas-de-casa, para os cientistas são tidos como símbolos de fertilidade, diversidade e riqueza.

Manguetown, a cidade
A planície costeira onde a cidade do Recife foi fundada é cortada por seis rios. Após a expulsão dos holandeses, no século XVII, a (ex)cidade "maurícia" passou desordenadamente às custas do aterramento indiscriminado e da destruição de seus manguezais.
Em contrapartida, o desvairio irresistível de uma cínica noção de "progresso", que elevou a cidade ao posto de "metrópole" do Nordeste, não tardou a revelar sua fragilidade.
Bastaram pequenas mudanças nos ventos da história, para que os primeiros sinais de esclerose econômica se manifestassem, no início dos anos setenta. Nos últimos trinta anos, a síndrome da estagnação, aliada a permanência do mito da "metrópole" só tem levado ao agravamento acelerado do quadro de miséria e caos urbano.

Mangue, a cena
Emergência! Um choque rápido ou o Recife morre de infarto! Não é preciso ser médico para saber que a maneira mais simples de parar o coração de um sujeito é obstruindo as suas veias. O modo mais rápido, também, de infartar e esvaziar a alma de uma cidade como o Recife é matar os seus rios e aterrar os seus estuários. O que fazer para não afundar na depressão crônica que paralisa os cidadãos? Como devolver o ânimo, deslobotomizar e recarregar as baterias da cidade? Simples! Basta injetar um pouco de energia na lama e estimular o que ainda resta de fertilidade nas veias do Recife.
Em meados de 91, começou a ser gerado e articulado em vários pontos da cidade um núcleo de pesquisa e produção de idéias pop. O objetivo era engendrar um "circuito energético", capaz de conectar as boas vibrações dos mangues com a rede mundial de circulação de conceitos pop. Imagem símbolo: uma antena parabólica enfiada na lama.
Hoje, Os mangueboys e manguegirls são indivíduos interessados em hip-hop, colapso da modernidade, Caos, ataques de predadores marítimos (principalmente tubarões), moda, Jackson do Pandeiro, Josué de Castro, rádio, sexo não-virtual, sabotagem, música de rua, conflitos étnicos, midiotia, Malcom Maclaren, Os Simpsons e todos os avanços da química aplicados no terreno da alteração e expansão da consciência.
Bastaram poucos anos para os produtos da fábrica mangue invadirem o Recife e começarem a se espalhar pelos quatro cantos do mundo. A descarga inicial de energia gerou uma cena musical com mais de cem bandas. No rastro dela, surgiram programas de rádio, desfiles de moda, vídeo clipes, filmes e muito mais. Pouco a pouco, as artérias vão sendo desbloqueadas e o sangue volta a circular pelas veias da Manguetown.


Recife respira história. E história também é presente. Então, vamos lá!
Cidade onde praticamente começou a efetiva colonização a partir de 1580 e que durante muitos anos rendeu lucros exorbitantes para Portugal através dos engenhos de cana de açúcar.
Em 1630, a principal área canavieira da América Portuguesa (a capitania de Pernambuco) caia nas mãos dos holandeses, que a governaram até 1654.

Durante a ocupação Holandesa, a cidade foi governada pelo holandês Maurício de Nassau e transformada em sede do governo holandês. Nassau deu os primeiros passos rumo ao “progresso” e “modernizou” a cidade de Recife. Se antes, com o domínio dos portugueses, Olinda era a cidade mais importante da capitania de Pernambuco, agora, com os holandeses, passou a ser Recife.

Cidade de resistência. Cidade criada pelos braços negros de escravizados africanos e indígenas, que presenciou de pertinho o nascimento do maior quilombo da história: Quilombo dos Palmares, cujo chefe guerreiro durante muito tempo foi Zumbi. Resistência dos tambores, dos maracatus, dos candomblés, da África! Resistência à qualquer tipo de colonização das mentes!


Após a Restauração Pernambucana, com a expulsão dos holandeses e a restauração do domínio português, o Nordeste iniciou uma crise devido, principalmente, a concorrência com a produção de açúcar holandesa nas Antilhas. As disputas entre portugueses e holandeses também favoreceram que muitos escravizados fugissem para Palmares, piorando a crise econômica. Outro fator foi que os altos custeios com a guerra fizeram com que os impostos aumentassem gerando resistência dos colonos.

O Nordeste foi e continua sendo deixado de lado pelo suposto “centro” do Brasil.
O Movimento Mangue da década de 90 hoje completa 20 anos de pura revolução no Recife e no Brasil. Até quando vamos fechar os olhos para isso?

Recife, cidade nordestina que precisa continuar ensinando muita coisa para o Brasil!


VIVA CHICO SCIENCE! VIVA NAÇÃO ZUMBI! VIVA ZUMBI DOS PALMARES!