Recife – cidade das belas pontes, do mangue, da
pobreza, dos maracatus, dos movimentos culturais, do lixo, do carnaval, do
frevo... A lindeza de seus prédios e pontes coloniais convivendo com a
realidade de milhares de pessoas instaladas à beira de rios imundos; a beleza
dos maracatus e de toda efervescência cultural junto com o fedor da urbanização
desordenada e caótica que foi gerada – principalmente – pelo processo de
colonização e que continua existindo sob o nome de progresso.
Estar em Recife é entender o Manguebeat. Quando
vi pela primeira vez aqueles lindos prédios do século XVII, e, depois,
passando ao largo do mangue onde pessoas constroem suas casas e vivem de
maneira bem precária, ainda me deparei com arranha-céus gigantescos! Foi uma profusão
de sentimentos! Tive a noção mais apropriada do que é a Manguetown.
E de que o movimento Manguebeat (r)existe!
Nascido no começo da década de 90, o Manguebeat é um movimento que liga tradição à modernidade denunciando as mazelas da cidade de Recife ao mesmo tempo em que valoriza as raízes de seu povo e a fusão com elementos pop.
De maneira crítica, bandas como Nação Zumbi e Mundo Livre S/A criaram uma nova expressão musical e artística onde, através do diálogo do novo com a tradição, os anseios da juventude da década de 90 mostraram ao Brasil toda a sua sagacidade:
A sensação de ver essas bandas hoje é
inexplicável, pelo sentido que elas têm para a cidade e que podem adquirir para
o país, de uma maneira mais geral.
Nós aqui do sudeste (principalmente eixo
Rio-São Paulo), não teríamos também os nossos “mangues”? A maneira pela qual as
regiões sul e sudeste do país vêm se relacionando com o nordeste, firmando cada
vez mais estereótipos negativos desta região, demostra o quanto o resto do Brasil precisa aprender com eles. E o Movimento Mangue é a marca mais registrada dessa
guinada, pelo menos no Recife.
Esse movimento que nós aqui pouco conhecemos
nasce oficialmente para a mídia em 1991/92 com a divulgação deste Manifesto.
Sua escrita é atribuída a Fred Zero Quatro (vocal do Mundo Livre Livre S/A) com
participação do falecido Chico Science (na época vocal do Nação Zumbi). Essas
foram as principais bandas envolvidas nesse movimento, muito embora tivessem
outras.
A seguir o manifesto:
Carangueijos
com Cérebro (Manifesto)
Por Fred Zero
Quatro
Mangue, o conceito.
Estuário. Parte terminal de rio ou
lagoa. Porção de rio com água salobra. Em suas margens se encontram os
manguezais, comunidades de plantas tropicais ou subtropicais inundadas pelos
movimentos das marés. Pela troca de matéria orgânica entre a água doce e a água
salgada, os mangues estão entre os ecossistemas mais produtivos do mundo.
Estima-se que duas mil espécies de
microorganismos e animais vertebrados e invertebrados estejam associados à
vegetação do mangue. Os estuários fornecem áreas de desova e criação para dois
terços da produção anual de pescados do mundo inteiro. Pelo menos oitenta
espécies comercialmente importantes dependem do alagadiço costeiro.
Não é por acaso que os mangues são
considerados um elo básico da cadeia alimentar marinha. Apesar das muriçocas,
mosquitos e mutucas, inimigos das donas-de-casa, para os cientistas são tidos
como símbolos de fertilidade, diversidade e riqueza.
Manguetown, a cidade
A planície costeira onde a cidade do
Recife foi fundada é cortada por seis rios. Após a expulsão dos holandeses, no
século XVII, a (ex)cidade "maurícia" passou desordenadamente às
custas do aterramento indiscriminado e da destruição de seus manguezais.
Em contrapartida, o desvairio irresistível de uma cínica noção de "progresso", que elevou a cidade ao posto de "metrópole" do Nordeste, não tardou a revelar sua fragilidade.
Em contrapartida, o desvairio irresistível de uma cínica noção de "progresso", que elevou a cidade ao posto de "metrópole" do Nordeste, não tardou a revelar sua fragilidade.
Bastaram pequenas mudanças nos ventos
da história, para que os primeiros sinais de esclerose econômica se
manifestassem, no início dos anos setenta. Nos últimos trinta anos, a síndrome
da estagnação, aliada a permanência do mito da "metrópole" só tem
levado ao agravamento acelerado do quadro de miséria e caos urbano.
Mangue, a cena
Emergência! Um choque rápido ou o
Recife morre de infarto! Não é preciso ser médico para saber que a maneira mais
simples de parar o coração de um sujeito é obstruindo as suas veias. O modo
mais rápido, também, de infartar e esvaziar a alma de uma cidade como o Recife
é matar os seus rios e aterrar os seus estuários. O que fazer para não afundar
na depressão crônica que paralisa os cidadãos? Como devolver o ânimo,
deslobotomizar e recarregar as baterias da cidade? Simples! Basta injetar um
pouco de energia na lama e estimular o que ainda resta de fertilidade nas veias
do Recife.
Em meados de 91, começou a ser gerado
e articulado em vários pontos da cidade um núcleo de pesquisa e produção de
idéias pop. O objetivo era engendrar um "circuito energético", capaz
de conectar as boas vibrações dos mangues com a rede mundial de circulação de
conceitos pop. Imagem símbolo: uma antena parabólica enfiada na lama.
Hoje, Os mangueboys e manguegirls são
indivíduos interessados em hip-hop, colapso da modernidade, Caos, ataques de
predadores marítimos (principalmente tubarões), moda, Jackson do Pandeiro,
Josué de Castro, rádio, sexo não-virtual, sabotagem, música de rua, conflitos
étnicos, midiotia, Malcom Maclaren, Os Simpsons e todos os avanços da química
aplicados no terreno da alteração e expansão da consciência.
Bastaram poucos anos para os produtos
da fábrica mangue invadirem o Recife e começarem a se espalhar pelos quatro
cantos do mundo. A descarga inicial de energia gerou uma cena musical com mais
de cem bandas. No rastro dela, surgiram programas de rádio, desfiles de moda,
vídeo clipes, filmes e muito mais. Pouco a pouco, as artérias vão sendo
desbloqueadas e o sangue volta a circular pelas veias da Manguetown.
Recife respira história. E história também é
presente. Então, vamos lá!
Cidade onde praticamente começou a efetiva
colonização a partir de 1580 e que durante muitos anos rendeu lucros
exorbitantes para Portugal através dos engenhos de cana de açúcar.
Em 1630, a principal área canavieira da América
Portuguesa (a capitania de Pernambuco) caia nas mãos dos holandeses, que a
governaram até 1654.
Durante a ocupação Holandesa, a cidade foi governada
pelo holandês Maurício de Nassau e transformada em sede do governo holandês. Nassau deu
os primeiros passos rumo ao “progresso” e “modernizou” a cidade de
Recife. Se antes, com o domínio dos portugueses, Olinda era a cidade mais
importante da capitania de Pernambuco, agora, com os holandeses, passou a ser
Recife.
Cidade de resistência. Cidade criada pelos
braços negros de escravizados africanos e indígenas, que presenciou de pertinho
o nascimento do maior quilombo da história: Quilombo dos Palmares, cujo chefe
guerreiro durante muito tempo foi Zumbi. Resistência dos tambores, dos
maracatus, dos candomblés, da África! Resistência à qualquer tipo de colonização das mentes!
Após a Restauração Pernambucana, com a expulsão
dos holandeses e a restauração do domínio português, o Nordeste iniciou uma
crise devido, principalmente, a concorrência com a produção de açúcar holandesa
nas Antilhas. As disputas entre portugueses e holandeses também favoreceram que
muitos escravizados fugissem para Palmares, piorando a crise econômica. Outro
fator foi que os altos custeios com a guerra fizeram com que os impostos
aumentassem gerando resistência dos colonos.
O Nordeste foi e continua sendo deixado de lado
pelo suposto “centro” do Brasil.
O Movimento Mangue da década de 90 hoje
completa 20 anos de pura revolução no Recife e no Brasil. Até quando vamos fechar os olhos para isso?
Recife, cidade nordestina que precisa continuar
ensinando muita coisa para o Brasil!
VIVA CHICO SCIENCE! VIVA NAÇÃO ZUMBI! VIVA
ZUMBI DOS PALMARES!